*Por Dida Figueiredo, artigo publicado originalmente no jornal O Globo
Havia racismo e lesbofobia na capital francesa dos anos 1920. Apesar disso, essas mulheres organizaram atividades que ajudaram a fazer da cidade a capital cultural do mundo.
O mundo artístico e literário teria perdido muito sem a existência e resistência dessas mulheres, porque, então, quase cem anos depois ainda as conhecemos tão pouco? Do lado esquerdo do Rio Sena, no início do século, Paris era uma festa boêmia . São conhecidos os relatos sobre a vida de Ernest Hemingway, James Joyce, Pablo Picasso, Scott Fitzgerald, e outros famosos artistas lá residentes. No entanto, são menos populares as narrativas sobre os saraus frequentados por eles nas casas de Gertrude Stein e Natalie Barney. E essa era a parte menos importante da vida dessas duas escritoras lésbicas que passaram décadas como figuras centrais da vida cultural da cidade.
Gertrude Stein possuía um estilo literário próprio. O livro que a consagrou chamava-se a “ A auto-biografia de Alice B Toklas ”, sua companheira. Stein possuía uma reputação por sua sagacidade, que a tornou crítica pessoal dos trabalhos de Hemingway e Picasso. Deste último, foi apoiadora, tendo deixado inúmeras de suas obras, quando de sua morte, para Alice. Esta era uma exímia cozinheira e escreveu um livro de receitas bastante famoso, especialmente por seus brownies de haxixe. Quando da morte de Gertrude, Alice nada herdou, nem sequer os quadros de Picasso. Muitas décadas antes dos relacionamentos entre pessoas do mesmo gênero terem reconhecimento legal era comum que a companheira sobrevivente fosse deixada na miséria. Alice viveu seus últimos anos da solidariedade dos amigos próximos e de seus próprios escritos.
Natalie Barney , escritora e poeta, também possuía uma casa frequentada pela nata dos artistas parisienses. Entre elas estava umas das famosas pintoras do período, reconhecida por possuir uma estética original e especializada em pintar autorretratos e retratos de suas amantes: Romaine Brooks , companheira de Natalie. Ambas viveram juntas por mais de 50 anos num relacionamento aberto. Natalie previamente havia tido um breve relacionamento com uma famosa cortesã, Liane de Pougy , e viveu na ilha de Lesbos com a poeta Renée Vivien. Ao se estabelecer em Paris, seus jardins eram frequentados por Isadora Duncan e Mata Hari, entre outras artistas, que eram vistas flanando fantasiadas ou mesmo passeando nuas por entre as flores.
A aura de liberdade da cidade se alastrava por cafés, livrarias e bares e boates voltados ao público lésbico, como o Le Monocle . A possibilidade de respirar esses ares mais libertários atraiu muitas outras mulheres lésbicas e bissexuais.
Uma delas foi Josephine Baker , mulher negra, bissexual, dançarina, ativista pelos direitos civis e integrante da resistência francesa à época da Segunda Guerra Mundial. Casou-se quatro vezes com homens e teve 12 filhos adotados de diferentes nacionalidades. Seu relacionamento lésbico mais famoso foi com a cantora de jazz Clara Smith . Nascida nos Estados Unidos, onde a segregação racial ainda era referendada pela Suprema Corte em muitos estados, Baker escolheu Paris para morar em 1925. Naquela época, já era famosa, por seus espetáculos na Broadway.
Mesmo grandes cidades europeias e estadunidenses ainda eram hostis ao mundo LGBT. Em Londres, a homossexualidade era criminalizada. Paris e Berlim eram vistas como um refúgio para onde migravam as lésbicas de classe média e alta.
Thelma Wood , escultora lésbica estadunidense, conhecida por suas inúmeras conquistas amorosas, namorou a fotografa Berenice Abbott , a poeta Edna Millay e a poeta e escritora modernista Djuna Barnes, que, em seu livro “Ladies Almanaque” descreve em detalhes a rica cena sáfica local.
Solita Solano , crítica literária e teatral para o Boston Herald Travel, reconhecida por sua luta pelo voto feminino, foi a Paris ao lado de Janet Flanner, com quem foi casada por mais de uma década. Flanner escreveu por mais de50 anos a coluna “Cartas de Paris” para a prestigiosa revista “New Yorker”, narrando desde a ocupação nazista em Paris até os protestos estudantis de 1968. Após a separação, Solano casou-se com a escultora Elizabeth Jenks Clark e Janet com a escritora italiana Natalia Danesi Murray.
Sylvia Beach fundou a famosa livraria Shakespeare and Company, pela qual também publicava livros de escritores iniciantes, incluindo “Ulisses”, de James Joyce; e o primeiro livro de Ernest Hemingway, “Três Histórias e Dez Poemas”. Sua livraria ficava praticamente em frente à “Maison des Amis des Livres”, livraria de propriedade da escritora e tradutora Adrienne Monnier , sua companheira por toda a vida. Tais livrarias eram importantes espaços culturais e ponto de encontro de artistas e intelectuais.
Olhar para a Paris de um século atrás não deve nos servir para romantizar o passado. Sim, existia racismo , classismo, machismo e lesbofobia por todos os lados também. No entanto, é isso que torna as vidas dessas mulheres tão extraordinárias: elas conseguiram produzir magníficas obras e viver o amor e o desejo sem se prenderem às regras impostas. Criaram um espaço seguro, um enclave de liberdade, numa Europa entre guerras. Em empos de tantos retrocessos, elas são a inspiração possível, nos lembrando que sempre existimos e resistimos. Como é bonito termos a capacidade de continuarmos unidas, nos protegendo, produzindo mudanças no mundo e amando e desejando quem nos apraz.
Dida Figueiredo é defensora de direitos humanos e assessora do nosso mandato.