Pacote “anticrime” continua prejudicando negros e pobres

Foto: Agência Brasil

Votamos contra o Pacote Anticrime porque consideramos que mesmo existindo mudanças importantes implementados pelo Grupo de Trabalho como a retirada do excludente de ilicitude, a manutenção das audiências de custódia, a implementação do juiz de garantias e da cadeia de custodia das provas, o projeto faz parte de uma política penal ilusória que vende para a sociedade que ela estará mais segura quando na verdade os problemas da segurança poderiam ser tratados por meios mais eficazes que não chegam sequer a serem discutidos.

Ontem mesmo, parlamentares e organizações da sociedade civil lançaram um pacote com quase uma centena de projetos tramitando na Câmara que constituem uma agenda de segurança pública e direitos humanos e contemplam seis grandes desafios: Desafio 1: Reestruturação do Sistema de Segurança Pública para um combate eficiente e efetivo à violência; desafio 2: Tratamento digno e respeito aos trabalhadores e trabalhadoras da segurança pública; desafio 3: Proteção dos direitos das vítimas de violência; desafio 4: Fortalecimento dos direitos e garantias fundamentais frente ao poder do Estado; desafio 5: reforma do Sistema Penitenciário; desafio 6: Fortalecimento das políticas públicas de prevenção com participação popular. Muitos desses projetos estão parados há anos.

Temos propostas para a melhoria da segurança pública e não acreditamos que elas estão em um projeto de lei como aprovado ontem que faz parte de uma prática de populismo penal que dentre outras coisas:

  1. Permite a escuta ambiental de cidadãos sendo investigados, ou seja, pode-se escutar todos os diálogos travados em um ambiente, eliminando o direito à privacidade não só do investigado mas de todas as pessoas que frequentam aquele local (Art. 8º-A da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996);
  2. Aumenta a pena de quem vende droga ou material para “preparar droga” tendo já antecedente neste tipo se conduta. Trata-se um modo muito aberto de se conceituar um crime, inúmeros produtos podem servir para fins ligados ou não a preparação de drogas. Num sistema penal, segundo a agência pública, uma pessoa negra é condenada por tráfico com 8 vezes menos quantidade que uma branca. Ou seja, pessoas brancas com até um quilo de maconha são consideradas usuárias e pessoas negras com 125 gramas já são consideradas traficantes. Imaginem se qualquer material (até produtos de limpeza) puder ser tido como utilizado para preparar drogas e esse tipo de antecedente utilizado para justificar a condenação? O resultado será mais homens negros e pobres condenados. ( § 1º do artigo 33 da Lei 11343/2006);
  3. Um juiz pode autorizar a escuta de conversa de um preso com seu advogado, eliminando o direito de defesa e impedindo o exercício da atividade advocatícia. ( do § 1º do artigo 3º da Lei nº 11.671, de 8 de maio de 2008);
  4. Retira o requisito de proporcionalidade na resposta do agente de segurança pública em casos de legitima defesa. Hoje, em qualquer caso de legitima defesa é preciso se demonstrar que a atitude tomada foi proporcional à ameaça. (Art. 25, parágrafo único);
  5. Sabemos que muitas armas de uso registro da polícia e das forças armadas chegam às mãos do traficantes por ações de corrupção que envolvem agentes de segurança pública. Ao invés de tratar dessas ações, o projeto penaliza mais uma vez o pobre que, por estar usando uma arma de uso restrito, terá sua pena duplicada (art. 157, § 2º-B), mas aqueles que permitiram o desvio das armas não.
  6. Imaginem uma pessoa moradora de favelas e regiões comandadas por tráfico ou milícia ser coagida a guardar arma de fogo, acessório ou munição em sua casa e poder ser a pena de reclusão, de três a seis anos, e multa. Mais uma vez o Estado permite que existam territórios impenetráveis dominados pelo poder paralelo e criminaliza quem não tem proteção, nem força para se defender, determinando como crime com pena de até seis anos “possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”;
  7. Estabelece um regime disciplinar diferenciado que pode ser prorrogado indefinidamente se o condenado for pego em falta grave que se constitui na ocorrência de crime doloso (crime doloso significa qualquer crime praticado com intencionalidade, mesmo sem violência. Então, mais uma vez se a pessoa for acusada de vender drogas na prisão pode ser confinada em solitária por dois anos e a acusação é feita meramente pelo agente penal. Dá-se ao agente penal a possibilidade de piorar muito a situação dos presos e se possibilitam assim relações baseadas em chantagem e corrupção.) (Art. 52 da Lei de Execução Penal);
  8. Supremo Tribunal Federal em casos de investigação de paternidade já decidiu ser inconstitucional alguém ser forçado a fornecer material genético. No entanto, pelo projeto determinados condenados são obrigados a fornecerem tal material e a recusa é considerada falta grave. Neste ponto, concordamos com a preocupação da Coalizão negra: “Temos, no Brasil, um longo histórico eugenista. Não podemos desconsiderar, portanto, o risco de que informação genética seja preditiva de comportamento social. O processo eugenista no curso da história brasileira foi um dos responsáveis por manter a população negra do Brasil em uma situação de vulnerabilidade social e econômica. Ao coletar dados genéticos de uma pessoa, tem-se a possibilidade de acessar informações seus descendentes e familiares, e abre-se a possibilidade de usos de dados para além do contexto de investigação criminal. Proporcionando o mapeamento genético, poder-se-á acelerar ainda mais as ações de “prevenção à criminalidade”, com a ostensividade da repressão policial junto a determinado grupo de indivíduos. E a já sabida discriminação sofrida por pessoas negras ou parentes de pessoas encarceradas poderia ser elevada drasticamente. Mais uma vez, ao invés de corrigir desigualdades e discriminações, as propostas em questões podem aprofundá-las”. (Art. 9º-A da Lei de Execução Penal);
  9. O último relatório do Infopen, de 2016, indica que 40% dos presos no Brasil ainda não haviam sequer tido sua culpa reconhecida por uma sentença de primeiro grau. Nesse sentido, uma medida explicitamente tendente aumentar o uso da prisão provisória deixa de levar em conta a realidade da população carcerária brasileira. A medida que prevê o fim da reincidência específica afrouxa a regulação da medida cautelar extrema, impondo ao juiz que declare se a pessoa é ou não um “criminoso habitual” quando toma o primeiro contato com os autos do processo, sem que haja qualquer baliza acerca de quais elementos seriam levados em conta nessa aferição. Uma vez que a proposta permite a presunção de habitualidade mesmo para investigados primários, ter-se-á como consequência um aumento do arbítrio no uso da prisão preventiva.

Tal medida, vista em perspectiva global com o restante do projeto, ainda aumenta o risco de utilização da prisão provisória como forma de coação na extração de confissão e/ou acordo assimétricos.

Cria-se a figura do agente encoberto parece querer afastar a categorização dos atos de eventual acusado como crime impossível por obra do agente provocador e consequentemente, dos atos do agente do estado como flagrante preparado (cf. STJ, AgRg nos EDcl no AREsp 1184410, 6ª T., rel. Min. Néfi Cordeiro, DJe 27/09/2018, unânime; STF, Súmula 145). Tanto assim que em todos os textos propostos, há o trecho “quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal pré-existente”. Esse trecho, no entanto, coloca em questão qual fato punível. Por um lado, parece que o fato punível nesses casos são eventuais atos pretéritos, não a conduta contemporânea do agente, que continuaria a caracterizar crime impossível – do contrário, seria desnecessária a nova regulamentação, porque o flagrante esperado é sempre lícito. Por outro lado, no entanto, a prova da conduta criminal pré-existente não poderia se limitar a “elementos probatórios razoáveis”, mas teria de constituir prova além de dúvida razoável, conforme interpretação do STF. (cf., p. ex., STF, AP 676, 1ª T., rel. Min. Rosa Weber, j. 17/10/2017, unânime), já que essa conduta é que constituiria o fato punível. Determinada o cumprimento imediato da pena do tribunal do júri para condenados a mais de 15 Anos, fazendo com que estes condenados passem a cumprir a pena já após o julgamento de primeiro instância. Apesar do nome Tribunal, o Júri é o julgamento de primeira instância.

Esta situação representa grave violação à plenitude da defesa garantida aos processos de competência do Tribunal do Júri, bem como ao duplo grau de jurisdição​, na medida em que antecipa açodadamente o juízo de culpa e a restrição de liberdade do acusado, antes mesmo de ter sido ele submetido a um julgamento definitivo acerca dos fatos que lhe foram atribuídos.

Em que pese a alegação de pretensão de aumentar a efetividade do Tribunal do Júri, não foram apresentados estudos ou elementos que justificassem que a antecipação do cumprimento da pena traria resultados no sentido de intimidar ou coibir a ocorrência de crimes dolosos contra a vida. Desta forma, não se vislumbra respaldo jurídico ou científico para embasar o texto da proposta, cuja única finalidade evidenciada é de obstar o exercício do direito recurso efetivo pelo acusado​. Note-se que a medida, caso aprovada, será geradora de um grande número de casos de erro judiciário, já que o índice de provimento de recursos no rito do júri é notadamente elevado.

Como se vê, o projeto traz inúmeras medidas com capacidade de ampliar ainda mais o braço penal do estado sem considerar o fato fartamente demonstrado de que o atual sistema penal é racista e aplicado de modo seletivo, nem tampouco que os presídios se encontram superlotados de pessoas negras e pobres que não cometeram nenhum ato violento (segundo o CNJ, 33,5% dos condenados praticaram furto ou tráfico de drogas, ressalte-se que consideramos uso abusivo de drogas como uma questão de saúde pública), nem tampouco lida com o “estado de coisas inconstitucional” dos presídios brasileiros, nos quais presos são vítimas se torturas, maus tratos, doenças evitáveis, falta de atendimento médico, dentre outras tantas violações de direitos.

Mais do que tudo isso, vemos um Governo e um Congresso que permitem o aumento da pobreza e da desigualdade, aprovando congelamento do salário mínimo, taxação de desempregados, flexibilização de leis trabalhistas, uma reforma da previdência contra o povo, e votam a urgência de um projeto penal que piorará a vida de milhares de pessoas vendendo a sociedade uma ilusão de segurança que não chegará por esses meios. Não é por acaso, o braço penal do Estado está aí para manter o controle de uma população empobrecida pelos cortes de direitos sociais.

Continuaremos lutando sempre por uma sociedade mais segura para todas e todos, porém entendemos que ela só será erguida com bases sólidas e reformas estruturais que combatam a pobreza e a desigualdade, que ataquem o racismo estrutural e institucional e que promovam reformas também estruturantes nos sistemas de segurança pública, justiça e penitenciário, assim, convidamos todas e todos a conhecer a Agenda de Segurança Pública e Direitos Humanos.

dezembro 5, 2019