Foto de Márcia Foletto escancara a falência de uma sociedade marcada pelo racismo

Sou mãe de duas crianças pequenas. É nelas que vejo o futuro. É com elas que sonho o amanhã. A imagem publicada na última quarta-feira pelo GLOBO, da fotógrafa Márcia Foletto, retrata justamente o oposto: a destruição do futuro. Policiais armados, com fuzis a tiracolo, carregam um corpo dentro de um saco preto. Ao lado, uma adolescente tenta proteger uma menina, cobrindo os olhos da criança para ela não presenciar a cena de horror.
É uma tentativa comovente de preservar a infância da garota de uniforme escolar — em meio a tantas infâncias interrompidas. A cena se passa numa viela da Ladeira dos Tabajaras, na Zona Sul do Rio.
Marcus Vinícius, Maria Eduarda, Ágatha, João Pedro. O Rio de Janeiro carrega em sua história os nomes de muitas crianças mortas. E quantas mães morrem junto com seus filhos? Quantas se despedaçam diante da sensação de impotência, de que falharam em protegê-los — quando, na verdade, é o Estado que falha, é o Estado que mata — o mesmo que deveria proteger.
Aquela imagem escancara a falência de uma sociedade marcada pelo racismo. Um racismo sustentado por um modelo de segurança pública que há anos enxuga sangue, mas não resolve conflitos. Que prioriza a ostensividade como regra, mantém operações perto de escolas, autoriza o uso de helicópteros que disparam do alto, mas segue incapaz de controlar armas e munições — e, sobretudo, de investigar com seriedade os fatos e o rastro do dinheiro que sustenta as organizações criminosas.
Enquanto isso, seguimos apostando em vingança, negligenciando o papel da perícia independente, com a cumplicidade do governo Cláudio Castro. Essa lógica é parte do que o Instituto Fogo Cruzado chamou de “explosão na violência armada”. Um relatório divulgado em fevereiro mostrou que, só em janeiro de 2025, a Região Metropolitana do Rio registrou 181 pessoas baleadas — 79 delas mortas. É um cenário significativamente mais violento do que o de janeiro de 2024, quando 101 pessoas foram baleadas, e 58 morreram. O aumento foi de 79% no número de baleados e de 36% nas mortes. Os dados escancaram a escalada da barbárie.
Essa lógica perversa adoece a todos: mães, comunidades, policiais. A foto é uma fratura aberta na nossa democracia. Um grito de socorro que ecoa do chão da favela. E eu me pergunto, como mulher negra e mãe: quantos mais precisam morrer até que essa guerra acabe? Quantas crianças ainda terão os olhos fechados no caminho para a escola? Quantas mais?
Na Câmara dos Deputados, tenho lutado para frear esse horror. Apresentei o PL Marcus Vinícius (PL 3873/2019), que estabelece regras para proteger crianças e adolescentes durante operações policiais. Também denunciei o uso de helicópteros que atiram durante ações como a que ocorreu recentemente na Ladeira dos Tabajaras.
Mas sei que o trabalho parlamentar tem limites. Para além das mudanças legais e do investimento em investigações estruturadas, é urgente que o Ministério Público exerça, de fato, seu papel de controle externo das polícias.
Dedico parte do meu mandato ao enfrentamento da violência porque não posso — e não vou — me calar diante dessa guerra. Como mãe e como deputada, reafirmo: não há democracia possível com corpos negros no chão e o consentimento do Estado como resposta.
*Talíria Petrone é deputada federal (PSOL-RJ)
Artigo publicado originalmente no jornal “O Globo” em 18/04/2025. Clique aqui para acessá-lo: